Ayn Rand: a arte do discurso

Algo que sempre me chamou a atenção é a arte do discurso na ficção de Ayn Rand. Suas duas maiores obras The Fountainhead (A Nascente) e Atlas Shrugged (Revolta de Atlas) possuem um longo discurso, ao final, realizado por seus protagonistas.  Em “A Nascente”, Howard Roark, um arquiteto talentoso e visionário que procura romper com a mesmice e trazer algo novo e funcional para sua área de conhecimento, é acusado de ter dinamitado um conjunto de prédios projetado por ele, conforme seu conceito, e que fora vilipendiado por retrógrados. Em pleno júri, Howard faz uma defesa esplendida explicando o que é o real conceito de propriedade intelectual e livre manifestação de ideias. No romance, o discurso se inicia no volume dois do livro, página 331, se encerrando na página 339. É um discurso longo, não sendo possível colocá-lo aqui, contudo, existe uma versão cinematográfica da obra, com roteiro da própria Ayn Rand, aonde há uma cena em que esse discurso é resumido aos moldes audiovisuais, eis a cena logo abaixo, e uma transcrição alternativa baseada no roteiro do filme, logo depois.

https://www.youtube.com/watch?v=fDu0bTQ2bLw

Juiz: A defesa pode prosseguir. 

Roark: Meritíssimo, não vou chamar nenhuma testemunha. Este será o meu testemunho e meu encerramento. 

Juiz: Faça o juramento. 

Membro da Corte: Você jura dizer a verdade, toda a verdade, e nada além da verdade, com a graça de Deus? 

Roark: Eu juro. 

Milhares de anos atrás, o primeiro homem descobriu como fazer fogo. Ele provavelmente foi queimado na fogueira que havia ensinado seus irmãos a acender, mas ele lhes deixou um presente que não tinham concebido, e eliminou a escuridão da terra. 

Ao longo dos séculos, houve homens que deram os primeiros passos em novos caminhos, armados apenas com sua própria visão. Os grandes criadores – os pensadores, artistas, cientistas, inventores – ficaram sozinhos contra os homens de seu tempo. Cada novo pensamento era contradito, cada nova invenção foi denunciada. Mas os homens de visão original foram em frente. Eles lutaram, sofreram e pagaram. Mas eles ganharam. 

Nenhum criador foi motivado por um desejo de agradar a seus irmãos. Seus irmãos odiavam o presente que ele lhes oferecia. Sua verdade era seu único motivo. Seu trabalho era sua única meta. Sua obra – não aqueles que a utilizariam. Sua criação – e não a outros benefícios derivados dela – a criação, que deu forma à sua verdade. 

Ele manteve a sua verdade acima de tudo e contra todos os homens. Ele foi à frente, quer os outros concordassem com ele ou não, com a sua integridade como sua única bandeira. Ele não serviu a nada nem a ninguém. Ele viveu para si mesmo. E só vivendo para si mesmo, foi capaz de conquistar as coisas que são a glória da humanidade. Essa é a natureza da realização. O homem não pode sobreviver, senão por sua mente. Ele vem à Terra desarmado. Seu cérebro é sua única arma. Mas a mente é um atributo do indivíduo. Não existe algo como um cérebro coletivo. O homem que pensa deve pensar e agir por conta própria. A mente racional não pode trabalhar sob qualquer tipo de coerção. Ele não pode ser subordinado às necessidades, opiniões ou desejos dos outros. Não é um objeto de sacrifício. 

O criador tem seu próprio julgamento, o parasita segue a opinião dos outros. O criador pensa, o parasita copia. O criador produz; o parasita rouba. A preocupação do criador é a conquista da natureza; a preocupação do parasita é a conquista dos homens. O criador exige a independência. Ele não serve nem comanda. Ele lida com os homens através da livre troca e da escolha voluntária. O parasita procura o poder. Ele quer prender todos os homens juntos em uma ação comum e em escravidão comum. Ele afirma que o homem é apenas uma ferramenta para o uso dos outros – que ele deve pensar como eles pensam, agir como eles agem e viver em servidão altruísta e sem alegria para qualquer necessidade, exceto para a sua própria. 

Olhem para a história: tudo o que temos, cada grande conquista veio do trabalho independente de uma mente independente. Todos os horrores e a destruição vieram das tentativas de forçar os homens a ser uma manada de burros, robôs sem alma – sem direitos pessoais, sem ambição pessoal, sem vontade, esperança, ou dignidade. É um conflito antigo. Ele tem outro nome: “O indivíduo contra a coletividade”. 

Nosso país, o mais nobre país na história dos homens, foi construído no princípio do individualismo, o princípio dos “direitos inalienáveis” dos homens. Era um país onde um homem estava livre para buscar sua própria felicidade, para ganhar e produzir, não para desistir e renunciar; para prosperar, não para morrer de fome; para conquistar, e não para saquear; para ter como sua mais elevada posse um senso de seu valor pessoal, e como sua mais elevada virtude o respeito a si mesmo. Olhem para os resultados. Isso é o que os coletivistas estão agora lhes pedindo para destruir, como tanto da Terra já foi destruída. 

Eu sou um arquiteto. Eu sei o que está por vir a partir do princípio sobre o qual se está construindo. Estamos nos aproximando de um mundo em que eu não posso me permitir viver. Minhas ideias são de minha propriedade. Elas foram tiradas de mim pela força, pela quebra de contrato. Nenhuma chance de apelação foi deixada para mim. Acreditava-se que o meu trabalho pertencia aos outros, para fazer o que quisessem com ele. Eles tinham um requerimento sobre mim sem o meu consentimento – que era meu dever atendê-los sem escolha ou recompensa. 

Agora você sabe porque eu dinamitei Courtland. Eu projetei Courtland. Eu o tornei possível. Eu o destruí. Eu concordei em projetá-lo com o propósito de o ver construído como eu desejava. Esse foi o preço que estabeleci para o meu trabalho. Ele não foi pago. Meu prédio foi desfigurado ao capricho de outros que tomaram todos os benefícios do meu trabalho e nada me deram em troca. 

Eu vim aqui para dizer que eu não reconheço o direito de ninguém para um minuto da minha vida, nem a qualquer parte da minha energia, nem a nenhuma de minhas realizações – não importa quem faça o pedido! 

Tinha de ser dito: O mundo está perecendo por causa de uma orgia de auto-sacrifício. Eu vim aqui para ser ouvido em nome de todos os homens independentes que ainda restam no mundo. Eu queria dizer meus termos. Eu não quero trabalhar ou viver de quaisquer outros.

Anos depois, ao publicar a “Revolta de Atlas”, Ayn Rand, voltaria a usar esse recurso discursivo para propagar sua filosofia: o Objetivismo. No 3º volume do livro, na página 331 e seguindo, de forma ininterrupta, até a página 395, John Galt, um homem que diante do caos coletivista que se alastrava, prometeu que iria parar o mundo convencendo as melhores mentes a iniciar uma greve criativa e a se isolarem em um Vale fundando uma comunidade de livre mercado com total respeito ao direito à propriedade, no ápice do seu estratagema, ele discursa numa transmissão de rádio, aonde sob sua interferência Galt revela o porquê do mundo estar decadente, e quais são as condições para que ele se erga novamente. Assim como em “A Nascente”, o discurso é bem longo, mas também há uma versão cinematográfica que resume bem as palavras ditas por John Galt, nesse caso, o rádio é substituído pela TV:

Eis também, uma transcrição, muito próxima da essência do longo discurso contido no livro:

Por doze anos você tem perguntado “Quem é John Galt?”. Aqui é John Galt falando. Eu sou o homem que levou embora suas vítimas e assim destruiu o seu mundo. Você ouviu dizer que esta é uma era de crise moral e que os pecados do Homem estão destruindo o mundo. Mas sua principal virtude tem sido o sacrifício, e você pede mais sacrifícios a cada novo desastre. Você sacrificou a justiça em nome da misericórdia, felicidade em nome do dever. Então, porque você tem medo do mundo ao seu redor?


Seu mundo é somente o produto dos seus sacrifícios. Enquanto você estava arrastando para os altares do sacrifício os homens que tornaram possível sua felicidade, eu o venci. Eu cheguei primeiro e contei para eles o jogo que você estava jogando e aonde isso iria os levar. Eu expliquei as consequências da sua moralidade de ‘amor entre irmãos’, que eles tinham sido inocentemente generosos demais para entender. Você não irá encontrá-los agora, quando você precisa deles mais do que nunca.


Nós estamos em greve contra seu credo de recompensas não merecidas e deveres não recompensados. Se você quer saber como eu os fiz desistir, eu contei a eles exatamente o que estou dizendo a você esta noite. Eu ensinei para eles a moralidade da Razão – que era certo buscar a própria felicidade como principal sentido da vida. Eu não considero o prazer de outros como o sentido da minha vida, nem considero que meu prazer deva ser o sentido da vida de outra pessoa.


Eu sou um comerciante. Eu obtenho tudo o que tenho em troca das coisas que eu produzo. Eu não peço nada mais nem nada menos do que eu fiz por merecer. Isto é justiça. A força é um grande mal que não tem lugar num mundo racional. Não se pode jamais forçar um ser humano a agir contra seu próprio julgamento. Se você nega a um homem o direito de raciocinar, você deve negar seu próprio direito ao seu próprio julgamento. No entanto você permitiu que seu mundo fosse governado por meio da força, por homens que alegam que medo e alegria são incentivos similares, mas medo e força são mais práticos.


Você permitiu que tais homens ocupassem posições de poder no seu mundo pregando que todos os homens são maus desde o nascimento. Quando homens acreditam nisso, eles não veem nada errado em agir como quiserem. O nome desse absurdo é ‘pecado original’. Isso é impossível: o que está fora da possibilidade de escolha está também fora do alcance da moralidade. Chamar de pecado algo que independe da escolha do homem é fazer piada da justiça. Dizer que os homens nascem com livre arbítrio, mas com uma tendência à maldade é ridículo. Se a tendência é uma escolha, não veio ao nascer. Se a tendência não é uma escolha, então o homem não tem livre-arbítrio.


E então surge a sua moralidade de ‘amor entre irmãos’. Porque é moral servir aos outros, mas não a você mesmo? Se a felicidade é um valor, porque é moral quando sentida pelos outros, mas não por você? Porque é imoral produzir uma coisa de valor e guardar para si mesmo, quando é moral para os outros, que não a produziram, aceitá-la? Se há virtude em dar, não é então egoísmo receber?


Sua aceitação do código do altruísmo faz você temer o homem que tem um dólar a menos que você porque isso faz você sentir que esse dólar é, por direito, dele. Você odeia o homem com um dólar a mais que você porque o dólar que ele está guardando é seu por direito. Seu código tornou impossível saber quando é hora de dar e quando é hora de tomar.

Você sabe que não pode dar tudo o que tem e morrer de fome. Você se forçou a viver com uma culpa irracional e não merecida. É apropriado ajudar outro homem? Não, se ele cobra isso como se fosse um direito dele ou como algo que você deve a ele. Sim, se é a sua própria escolha, baseada no seu julgamento do valor daquela pessoa e suas dificuldades. Este país não foi construído por homens que buscavam coisas grátis. Na sua brilhante juventude, este país mostrou ao resto do mundo que a grandeza era possível ao Homem e que felicidade era possível na Terra.


Então o país começou a se desculpar por sua grandeza e começou a dar sua riqueza, sentindo-se culpado por ter produzido mais que seus vizinhos. Há 12 anos eu percebi o que estava errado no mundo e onde a batalha pela Vida tinha que ser lutada. Eu vi que o inimigo era uma moralidade invertida e que minha aceitação desta moralidade era seu único poder. Eu fui o primeiro dos homens que se recusaram a desistir de buscar sua própria felicidade porque eu não queria apenas servir aos outros.

Para aqueles de vocês que ainda guardam um resquício de dignidade e a vontade de viver suas vidas por vocês mesmos, ainda há chance de fazer a mesma escolha. Examine seus valores e entenda que você deve escolher um lado. Qualquer meio-termo entre o bem e o mal somente serve para ferir os bons e ajudar os maus.

Se você entendeu o que eu disse, pare de apoiar seus destruidores. Não aceite a filosofia deles. Seus destruidores seguram você por causa de sua resistência, sua generosidade, sua inocência e seu amor. Não destrua a si mesmo para ajudar a construir o tipo de mundo que você vê ao seu redor. Em nome do melhor que há em você, não sacrifique o mundo por aqueles que irão tomar sua felicidade por causa dele.

O mundo irá mudar quando você estiver pronto para pronunciar este juramento:

Eu juro pela minha Vida e pelo meu amor por ela que nunca irei viver em função de outro homem, nem vou pedir a outro homem que viva em função de mim.

É fato que o Objetivismo chegou ao status de grandeza filosófica graças à ficção de Ayn Rand, persistindo até os dias de hoje, influenciando desde o Tea Party, até um cidadão como eu, escondido em Tobias Barreto/SE, uma cidadezinha de interior, encravada no nordeste brasileiro. E caso se pergunte qual dos dois discursos eu mais gosto, particularmente, me identifico com o de Howard Roark, porque sei bem como é ser réu em um tribunal por defesa dos seus ideais de liberdade e propriedade. Todavia, também me identifico muito com o discurso de John Galt, apesar de eu nunca ter invadido transmissões para promover meus atos, creio que ao longo dos anos, arregimentei algumas mentes proeminentes para meu pequeno mundo.

Enfim, apesar das versões resumidas serem interessantes, ainda sim, recomendo que leiam o original para que possam perceber a genialidade que Ayn Rand teve de se utilizar na ficção para popularizar sua própria filosofia.

ayn_rand_quot_voce_pode_ignorar_a_realidade_mas_nao_pod_loe88rr

CATEGORIES:

Artigos-cultura

Tags:

2 Responses

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *